Quem conta um conto...

Sábia lenda Oriental que a contadora Juliana Franklin partilhou com a equipe de Sala de Leitura em um de nossos encontros de sexta-feira, no dia 18/03/2011. Inspiração para nosso trabalho...

 

UMA FÁBULA SOBRE A FÁBULA 

Allahur Akbar! Allahur Akbar! (A história vai começar)


Quando Deus criou a mulher, criou também a Fantasia. Um dia, a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harum Al Raschid.
Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.
Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou a Verdade! - respondeu ela, com voz firme.
- Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid, o cheique do Islã!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir:
- Senhor - disse, inclinando-se humilde -, uma mulher desconhecida,  quase nua, quer falar ao nosso soberano, o sultão Harum Al-Raschid, Príncipe dos Crente.
- Como se chama?
- Chama-se a Verdade!
- A Verdade! - exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de grande
espanto. - A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a  desgraça nossa! Diz-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!
Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:
- Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso califa.
Com ares impudicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harum Al-Raschid. Volta pois, pelos caminhos de Allah!
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste a
Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão
Harum Al-Raschid, cujas portas se fecharam à diáfana formosura!
Mas...Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também a obstinação. E a Verdade
continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid.
Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.
Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe.
- Quem és?
- Sou a Acusação! - respondeu ela, em tom severo. Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid. Comendador dos Crentes.
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir.
- Senhor - disse, inclinando-se humilde -, uma mulher desconhecida, o
corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harum Al-Raschid.
- Como se chama?
- A Acusação!
- A Acusação? - repetiu o grão-vizir, aterrorizado. - A Acusação quer
entrar neste palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Diz-lhe que uma mulher, sob vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor.
Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir e disse à
Verdade:
- Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de
um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah.
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste
a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harum Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.
Mas...

Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher criou também o capricho. E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid.
Vestiu-se com riquíssimos trajes, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes.
Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de
Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou a Fábula - respondeu ela, em tom meigo e mavioso. - Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harum Al-Raschid, Emir dos Árabes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu, radiante, a
falar com o grão-vizir.
- Senhor - disse, inclinando-se, humilde -, uma linda e encantadora
mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid, Emir dos Crentes.
- Como se chama?
- Se chama Fábula!
- A Fábula! - exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. - A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e
perfumes. Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!
E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa
peregrina entrou.
E foi assim, sob o aspecto da Fábula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harum Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande império muçulmano.

Transcrito do Livro "Minha Vida Querida", de Malba Tahan - Editora Record